A ampulheta, a guilhotina, e o não paraíso

Quando imagino o passado, todos os pesares se sustentam. Nego-os, pois não posso usufruir suas mudanças, mesmo que as tente, sei que não, não é assim. E a cada tempo que passa, o que ainda é ruminado, faz-nos derreter nossas células, envelhecer, sendo assim desusados. Crer na velhice como uma sabedoria, é tão enganador, pois levo este engano a minha imagem. Prefiro acreditar (como já foi escrito), na divisão singular da humanidade; os miseráveis, aqueles que procuram num todo, a sua bem quista situação financeira, sendo forçado para isso, se abster aos seus desejos...ínfimos, e... sobre os extraordinários, assim como sua raridade de um em milhões de anos, deixe estar...
Os exemplos são repetidos, com nenhuma fagulha de mudança mas, tornando-se velhas, mesmo que intocadas, não através do tato, e sim pela areia do tempo, pela ampulheta infinita que vira e revira. A desobediência incrustada, também escapa, e a guilhotina de segundos após segundos vai ao céu. Quem era o meu sedutor, há não ser eu mesmo com um sorriso entreaberto e de soslaio? Prefiro ainda ter morrido no ventre.
Quando soube do pecado mortal, conhecimento adquirido na infância, imaginei que seria difícil não cometê-lo. Então para uma criança, morrer jovem seria uma boa maneira para se levar ao céu, claro que, sem cometer o pecado que lhe expeli do paraíso. Envelheci da pior forma. Me exteriorizei simuladamente, e quando envelhecemos aliás, é a única coisa que criamos um grande conhecimento... simular, fingir!
Queimei os cabelos, pois não tive forças de trancar a respiração num pequeno lago, nem vi a cobra que poderia me engolir. O escarro para mim já não é maçante, e me previno ao me masturbar envenenando meus hereditários.
Ora, ora! Envelheci da pior forma.



O portão de girassol

Ao deitar, pensei como sempre no amanhã. Resolvi (e já era hora) ir visitar dois amigos, ou melhor, o irmão de um amigo, e um amigo mais íntimo.
O calor do dia e uma irritação, desfez meu plano. E neste pensamento, já quase que recorrente, fiz o trajeto, a conversa e até senti, como se estivesse acontecido, tal o ímpeto. Antes de mais nada, quero frisar, que o plano fazia parte para que o texto aqui escrito, fosse deveras mais coeso e quê, o meu pensamento (estou minimizando a sensação) não exorbitasse, e através de tal gravidade...um buraco negro, cintilante.
Dou explicações, para entender-vos, que provisoriamente busco à realidade. Mesmo quê, entre pensar e viver, prefiro pensar. Mas vamos, sem rodeios. Pois, mesmo em pensamento, resolvi escrevê-lo.

Há visita aos amigos, se passou no cemitério da cidade. Demorei para encontrar uma das "moradas", a outra já há conhecia bem, era familiar. Me vesti à rigor, levei um punhado de flores, e coloquei em cada, três raminhos. Rezei sem pensar, sentia saudades.
De W****. Me lamentava por ter ido embora, e em nenhum momento cogitar a idéia de não vê-lo mais.

"O som grave de seu instrumento, continuará reverberando em meu espírito. Belo moço."

De meu avô, M*****. O de não ter passado mais tempo com ele, dele não ter me visto crescer, e de não tê-lo dito, o quanto o amava.

"Quando o amor é eterno, e o sentimos sem... Desejaria odiá-lo, e não sentir nada por ti. Se fosse me dado, uma nova chance para te ver."

Quando deixei o portão da casa dos que dormem, lembrei de uma história que havia lido, de um homem que condenado à morte, desejaria viver eternamente encima de um cume, deserto e solitário. Mas, que não lhe tirassem à vida.
Viver, viver, viver...É isso na verdade, a única coisa que importa.



Alguma coisa que não se possa ler

Ela adorava toques, suas mãos passando pelo seu corpo, quando tocava seus seios e arrepiava-se quando acariciava seu rosto. Dormia apenas passando a mão levemente em sua barriga, e o barulho do ventilador ao longe, trazendo um pouco de vento, lhe fazia sorrir de prazer próximo do sono.
Era uma leitora assídua de Samuel Beckett, e após ler Primeiro Amor, lhe atiçou ao coração batidas cruéis. Sentia-se completa. Sua recatada maneira era decomposta apenas em seu quarto, lendo.
Poderia detalhar com características de uma flor sua beleza, mas lhe atribuir apenas, à sua arte de ler, já me é o suficiente. E além, seus quadros de infância que eram mais admiráveis do que os de sua juventude e que seriam melhores do que os da sua velhice.
Em seu caderno, o que poderia ser um diário, ela sublinhava: "Alguma coisa que não se possa ler". E começou seus escritos assim:

"Vou escrever sobre o que chamam de amor. Vou costurar com esferográfica e enodoar o amor de vermelho. Vou sem intenção alguma, pois agora ir, já está quebrado"
Alguém em 03/06/....

Foram os anos, mesmo quando já estavam quebrados. Alguém escrevia sobre o amor ainda, e sempre sublinhava seus títulos. Costurou o amor não só de vermelho, tentou várias cores e até as misturou não gostando do resultado. Lia uma vez por ano seu livro preferido e sentia as batidas cruéis. Foi tocada algumas vezes por outras pessoas, odiou por conhecer o amor.
Um dia parou em algum lugar. Sentou e após, suas costas tocam ao chão.
E assim, em seu último dia escreveu:

"Aqueles com o coração humilhado, certas palavras. Aqueles com o coração frágil, como o meu, certos sentimentos..."





As velhas e conhecidas

Áspera com saliências predominantes, incumbidas para agregar dores. Minhas mãos...
Ainda irreconhecível, escondidas entre luvas rasgadas, mordidas para controlar a raiva. Agarro-me ao meu pescoço impedindo o ar - áspero também - rasgando-me como se me alimentasse de pregos ou engolisse arames como se fosse um macarrão dominical.
Meu rosto agora camaleónico e tufos de cabelos espalhados ao chão exaspera-me. Saltos e saltos, e lufo numa angústia agónica.
Agora ao chão frio numa pedra quadrangular e nu. Em arrepios e só. Uma água enlameada escorre de dentro de mim, toda a sujeira que sempre acreditei.
Estive ausente, e através de minhas mãos, continuarei.



As Sobras

Os espaços agora, são outros. As frestas reluzem em sombras, num quarto ainda não íntimo. Ando em passos mais rápido para passar despercebido. Pessoas gordas, outras magras, rostos familiares ainda que deteriorados em um contexto explicável, espremido...
Me esconder digo, é um pretexto pessoal, para me satisfazer em certo ponto, da minha invisibilidade natural. Como no momento, tem sido difícil expressar o que se passa. Talvez pudesse passar Querelle do Fassbinder em praça pública ou citar Percy Shelley em sussurros matinais. Enfim...
Estou calmo, não digo feliz. Estou apenas curioso. Curioso com...
O ar mais abafado e o vento que adiciona a quentura, um alívio.