Uma chuva miúda e uma caixa secreta

Sangue corre atráves do chuveiro. Me molha, ao mesmo tempo que seca e cola em minha pele.
Fiquei corado, eis a simples observação que tenho, quando acontece um "desastre".
Desastre, pois não sei o que se encontrava na caixa de água, da casa em que agora estou, da casa que à pouco irei partir e que me entedia.
A toalha que é a única visita para expor meu corpo nu, me acolhe e me esquenta. E atráves dela, o vermelho com seu odor de vida extinta, é retirado do meu corpo já também extinto, seco, tísico e vácuo.
O sangue que escorreu em mim, era de um feto. Talvez de um animal, talvez o meu, talvez do meu filho, talvez o da minha neta, talvez o feto de Deus. Foi algum tipo de batismo?
É claro que, é apenas uma história que inventei, com um significado escondido em entrelinhas que me veio com a chuva miúda que caia enquanto tomava um banho quente e sem sensações.
Era apenas para dizer: "Já estou lá, onde talvez não quisesse estar, que me sentirei sempre aqui, pensando não estar..." Eis o que sou, um estandarte de lamentações.
Queria arrumar, ser um mágico com uma cartola infinita que tirasse coisas finitas e inesquecíveis. Que eu tivesse uma caixa, mas receberei um dia uma caixa, não?
Mas quero antes, vômitar todo meu sangue, gota por gota. Para saber se existe algo, além disso.

Cortinas e bailarinas

Hoje instalou-se um dia nublado. Não me recordo de ter ouvido a minha voz, apenas desarrumei, revirei as coisas e não saí do lugar. A casa já está com ecos, as cortinas ainda movem-se com pancadas leves de vento frio, bailarinas poderiam rodopiar em silêncio, mulheres poderiam todas se despir e levar a mão ao seu sexo, poderia ter dado uma festa e deixar marcas de sapato da sala até o lugar que era o meu quarto. Na verdade, tudo isso aconteceu...do meu jeito.
O que me dói?
Deixar algo para trás, as provas. Não,não... não falo de amizades, esse complexo vexame. São as minhas coisas, entendem? A casa vazia, as mudanças, entendem?
A vida é inexistente sem esses âmagos, sem os registros, as digitais cessam num lapso.
Há existência, viva!
Danem-se quem você decepcionou, quem você deixou para trás, quem você tacou o dedo no ânus.
Há existência novamente, viva!
O vazio independente do que seja, me abala.
E sobre preenchimentos, sou contrário.


Pitoresco

"Talvez prolongar o amor, o sentimento. Prolongamos nada mais que os erros, absurdos, e o amor insuportável"



Momentos que reverberam

A tosse vem com engasgos na noite fria e com o cheiro úmido do quarto. Fico a pensar se faz bem manter-me enclausurado num lugar em tal estado. Por isso na noite, no momento que me deito sem sono, uma pequena garrafa de água me acompanha, fica ao lado, aberta e gélida. Um pouco de álcool seria muito melhor, além de me fazer dormir, evitaria a tosse, evitaria minha consciência de se desesperar com futilidades e se imbricarem, amontoando-se em vãos. Fico sentado com três lençóis grossos e aguardo... nada!
Ascendo o abaju, apago, a luz da saleta incomoda, apago, a escuridão suga, ascendo a luz avermelhada da saleta quanto o do abaju, me viro, o cachecol espalho entre o rosto precisamente nas narinas e tusso. Aguardo.
Inicio o ritual após o badalar das zero hora e aguardo até os barulhos dos carros, onde já cansado e inconsciente me entrego a prostituta sonífera. O tempo caminha rápido e o desinteresse é completo por essas vias insalubres.
Quando ela estava comigo, minha azeda Débora, poderia me deitar e apagar a luz sem desprezo, e seria mais agradável até, deixá-la acesa, se fosse apenas para lhe observar e lhe perguntar através de seu sonho: "Onde sem você, irei novamente escutar o seu belo sorriso? Se estamos mortos a luz não deveria ter nenhuma cor."

Para Débora e para os momentos.


Idade da Razão

"Me modernizo lendo os autores do passado, ouvindo as músicas do passado"




O ser negativo

"E caminhamos... para trás, para trás. Até se chegar ao fundo, num raso infinito."




Singela criança

"Dentro dos meus olhos, tem um monte de sonhos...
Eu sonhei hoje!"

Citação de Bianca, minha prima/sobrinha de 5 aninhos, da janela de sua casa.





Exatidão de não ser


Talvez cortar a garganta.
Simular subjecções entre companheiros que acabaram de se despedir em vão.
Citar e observar as complexas manifestações do belo e do sublime nos meus sentidos, hoje dispersos.
Músicas desagradáveis vindo de todos os lugares. Por cima orações... não entendem que não procuro salvação.
Roem minha garganta por dentro. Forço o vômito. Parece que são pessoas pequeninas, que reclamam e me chamam de repugnante (ecoa por dentro ou sinto-os?), reclamam mais, pois eu que os engoli. Pequenos espíritos que substituí pelo meu. Personalidades e moralismos degradados e absurdamente antiquados.
Lampejos?
Sacrilégios?
Homilia de revoltosos?
Acho que não. É apenas a individualidade e o cinismo.

Doces e Cantos

Atráves de conjecturas, fazia rabiscos para senti-la atráves das expressões de minha querida irmã.
Entre linhas e linhas, num vulto enigmático de impressões, nada fiz.
Apressar os dias nada vale, há não ser para causar uma grande insônia.
Quando me atrevo em algo, em que não possuo talento, fico completamente desmembrado.
Agora posso vê-la, há pouco poderei tocá-la, beijá-la, lhe cheirar as bochechas...
Seu nome, Cecília, a padroeira da música...
Minha doce e linda princesa, Cécile.



Em erros


"Num retarde, tragédias.
Irei, dado um passou seguinte, num retarde."



Estado das Coisas

Estou apenas perambulando pela cidade. A pé, de metrô, ônibus...observando. Guardando na memória, tentando exemplificar e minimizar determinadas circunstâncias de meu dote, meu dom agraciado de veneno, malignidade. Ruas vazias, pequenas, longas, cheias, prédios com arquitetura ridiculamente contemporânea, brechós...
Tenho insuficiência de imaginação para transcrever as imagens, saibam que, são bonitas, eram mais. Pode ser estranho mas, tenho pressa de exercer o que prometi para mim, a base de minha sustentabilidade espiritual e filosófica. Cada vez mais, sou atingido com uma bala, bem na nuca, à queima roupa. E minha veia solitária insisti em procurar alguém e desabafar, sou ridículo. Quando esquecer sempre foi para mim uma dificuldade que trouxe de minha criação, hoje esqueço até, que devo dormir.
Em minha caminhada para guardar as lembranças de minha solidão, para não esquecê-las e as deixar ao vento novamente, como o conto indígena, verbalizar esses pensamentos os tornaria sólidos. Pensava nisto, ao olhar uma prateleira com bonitas boinas e gravatas. Onde era mesmo o lugar?

- Ficaria perfeita em você? - Alguém diz
- A gravata ou a boina? - Replico sem olhar para trás
- As duas. Só quê...a boina deveria ser de outra cor - Nesse momento já estávamos de fronte
- Você não deve entender nada de moda? - Lhe disse
- Moda são para pessoas com baixa auto-estima - Sorrimos

Andamos, fiquei por segundos satisfeito de ter saido de casa. Há muito me sentia um vagabundo que vaga sem sentido, faltando-me apenas uma garrafa de vodca na mão. Mas, era preciso, preciso me recordar.
Lhe disse que restava algum pó de café em minha casa, era a única coisa que ainda tinha, e um pouco de leite, claro. Estava frio e a companhia por enquanto era intrigantemente agradável.
Aguardava a lástima acontecer e não tenho precaução sobre. É a gravidade.
Sentamos em minha mesa arredondada e lhe expliquei sobre meu dom. Sobre como em uma porcentagem quase impossível de acontecer algo errado, eu consigo atingir tal ponto crucial com uma maestria divina, preciosa e calculada.

- Eu não acredito em você - Ela diz
- Vá embora, me desculpe!

Fui até a porta e abri-a. Ela pega seu cachecol e sai. Tento terminar o café e não consigo, algumas lágrimas tentam desabar e as reponho.
Alguém bate na porta. Ela olha para mim, chorando.

- Eu não acredito em você! - Novamente ela diz.

Algumas pessoas voltam...